23.10.04

Divina Tragedia (canto VI) - Um Sorvete de Ambrosia no Segundo Céu

Como no Inferno, há também muita burocracia no Céu. Porém as filas são muito curtas e o atendimento informatizado. Na minha frente havia apenas uma freirinha sudanesa e o Christopher Reeve. Christopher estava com um problema. Um belo problema. O papel de SuperHomem contou muitos pontos – super-heróis são muito queridos por aqui –, mas a defesa do uso medicinal das células-tronco fez o Christoper aguardar uma apelação nas Cortes Celestiais. O que costuma demorar muito, pois no Céu existem muitos juízes, mas nenhum advogado entra. Teria que passar o caso para a Virgem Maria, a Intercessora. Mas, mesmo rachando os processos com Santo Expedito, ela ainda estava muito atrasada com os pedidos e só agora conseguira se desvencilhar dos recursos do século XVIII. Christopher Reeve sentia vontade de rodar o mundo ao contrário, mas só o que conseguia era, irritado, girar com a cadeira de rodas no mesmo ponto.

Na minha vez, mostrei toda a minha papelada. Passaporte, contrato, caderneta de vacinação. Os documentos do jegue também. Tudo em ordem.

– Trabalho ou passeio?
– Trabalho. Vou investigar um crime insolúvel.
– Puxa, que interessante. Isso deve demorar um bocado.

Talvez demore. Eu não tenho pressa. O anjo da imigração carimbou o passaporte dando estadia de 1/64 de eternidade. Parecia um período razoável. Ninguém da alfândega teve a coragem de revistar o jegue. Um anjão de bigode ruivo fez uma cara de nojo, enquanto nos dava a luz verde. Acho que até sabia que havia contrabando no jegue. Mas não seria ele que iria investigar isso a fundo. Sé é que você me entende.

A mansão de Lord Buttock localizava-se no valorizadíssimo condomínio fechado de Paineiras Furta-Cor, no Sétimo Céu. Seria uma longa subida. Elevador panorâmico ou escada rolante? Optei pela larga escada rolante que percorre em espiral todos os anéis do Paraíso. É sempre um passeio agradabilíssimo. A escadaria branca é toda ladeada com figuras de mármore alternando estátuas figurativas com esculturas abstratas. Um Hércules de Rodin, uma mão-pássaro de Brancusi, uma Ava Gardner de Bernini e uma estátua do Arcanjo Miguel de Michelângelo tão perfeita que realmente fala. Mesmo sem marteladas. Ela diz: "Favor não pisar na faixa amarela. Obrigado."

Demos uma paradinha no Segundo Céu. Lá, perto da entrada, ao lado da Apple Store, há a Gelateria do Olivier.
Sir Lawrence, no pós-morte, especializou-se na fina alquimia dos sorvetes de massa com sua dedicação shakespeariana. Fui servido pelo Jack Lemmon. A grande ambição de Lemmon sempre foi ser sorveteiro. Ele dizia que ficava bem com o bonezinho branco. E era verdade. Era o próprio sorveteiro. Pedi um Sweet Cordelia, que é sorvete de Ambrosia com um nadica de avelãs, a especialidade da Gelateria do Olivier. Caríssimo. Duas bolas e a cobertura de chocolate com Hidromel custam o mesmo que um banquete de bisão com abacaxis selvagens para quinze pessoas no Inferno. Mas só essa paradinha já valeu toda a viagem ao Paraíso.

Sorvi o sorvete sentado com o jegue em um gramado ensolarado onde brincavam as crianças felizes e saltitantes até que chegasse o caminhão. De quatro em quatro horas vem um caminhão da Administração Celeste e troca os moleques sujos por uns novos, de banho tomado. Se for o caso, tiram os carrapatos, dão cafeína e aplicam infravermelho nas bochechas das crianças para ficarem bem saltitantes e rosadinhas.

Sorvete tomado, voltamos, eu e o jegue, para a ascendente escada-rolante em espiral. O sorvete estava ótimo, mas eu ainda estava com fome. E, a despeito das câmeras de segurança, que estão em toda parte por aqui, sentei nos degraus e comi uma pamonha trazida dos Infernos. Uma Ambrosia perfeita, só no Céu e na Gelateria do Olivier. Mas pamonha, torresmo e acarajé, só confie nos dos Infernos mesmo.

O Terceiro Céu é bem legal também. A parte sudeste dele é o Sítio do Pica-pau Amarelo. A noroeste é a Terra do Nunca. Não. Não aquela, seu tonto, a original. Aquela que você pensou que fica no Sexto Círculo do Inferno é só para crianças muito, muito, mas muito mal-comportadas mesmo. Os outros dois quartos do Terceiro Céu são administrados pelo Lewis Carroll. Da outra vez que estive aqui, o danado do Lewis tinha feito a sua própria versão da Fantástica Fábrica de Chocolate. É sempre um passeio divertidíssimo a Carrolland. Mas não hoje. Primeiro os negócios.

O Quarto Céu é todo um MMORPG do Senhor dos Anéis. Você pode escolher ser um hobbit, um trent ou até cavaleiro negro. Joguei como Sauron uma vez. Em meia hora, matei o baixinho, peguei o anel, incendiei Rivendell, calcinei toda a Terra-Média e tiveram que resetar o jogo. Achei meio sem graça. É bem caro, mas é um dos poucos Círculos Celestes em que o homossexualismo é tolerado.

No Quinto Céu, as coisas começam a ficar mais sérias. Ele é uma titânica catedral circular. Vitrais quilométricos feitos de pedras preciosas. É um bom lugar para encher as pistolas d'água nas piscininhas de água benta. Os diabinhos do inferno odeiam! A enorme abóboda, em que passam de hora em hora os melhores momentos da Criação, é sustentada por enormes colunas de marfim maciço finamente entalhadas com a vida dos santos e apóstolos. É impossível você olhar para uma obra de arte dessas e não meditar profundamente. Por exemplo: qual seria o tamanho do bendito elefante que produziu esse marfim enorme? E a música. Ah, a música! Há um coro de anjos de sete mil vozes na quinta a noite e um querubim que toca Ave Maria no pente na sexta. No domingo J.S. Bach está sempre tocando seu órgão. Por isso não gosto de ficar muito perto do Sebá. Especialmente de braguilha aberta. É como diz Santa Cynthia: "se J.S. vier te propondo uma toccata, apele pra fuga. De preferência, em ré maior, contra a parede mais próxima..."

O Sexto Céu estava fechado. Há muito tempo. Está em reforma desde o século VIII. Ninguém tem muita certeza do que aconteceu aqui nem sabe no que essa área vai se transformar. Uns acham que pode virar um convento de luxo, outros um cassino à leite de pato, outros ainda dizem que ali se confecciona, em joint venture, a Besta do Apocalipse. Talvez todos tenham razão. Não sei.

Girando, girando, chegamos à entrada do Sétimo Céu. Há mais dois andares para cima. Mas minha parada é aqui.