14.10.04

Divina Tragédia (canto IV) - O Purgatório

Na saída dos Portões Negros resolvi fazer uma última sacanagem. Prendi com chiclete as duas campainhas, a do choro e a do ranger de dentes. O Cerberinho começou a latir aguda e alucinadamente com suas três cabecinhas idiotas. Esses trotes contam pontos por aqui. Cento e cinquenta mil pontos podem ser trocados por um CD de Natal da Simone.

Reparei que as velhas placas de propaganda DEIXAI TODAS AS ESPERANÇAS VÓS QUE ENTRASTES estavam sendo trocadas por umas novas. INFERWORLD – um Mundo de Perversões. Belo marketing. No fundo O Inferno não deixa de ser uma espécie de parque temático. É um Wet & Wild com piscinas de amônia e giletes no esgorregador. Um Very Hot & Wildest, no caso.

O Jânio Quadros inaugurou recentemente uma ponte para o Inferno sobre o Rio Aqueronte. Um obra supermoderna com 16 pistas. Todas só de ida.

Eu decidi atravessar o Aqueronte, o Rio da Morte na balsa do Velho Barqueiro. Mudanças também atingiram o velho Caronte. Agora que trabalhava na travessia era o jovem Caronte Jr. Contou-me que pensava em instalar um teleférico ligando as duas margens. Ou um sistema de catapultas. Ainda estava pensando na melhor possibilidade.
Caronte Jr. estava fazendo uma promoção legal. Agora quem volta para o lado de lá GANHA uma moedinha! A minha foi um tetradracma grego. Sou um sortudo dos Infernos.

Desembarcamos no Purgatório. Estava aliviado por finalmente respirar um ar sem enxofre ou nicotina e parar de suar como empreiteiro numa CPI.

É desse jeito o Purgatório. Não fede nem cheira. Não é úmido nem seco. Não faz frio, não faz calor. O tempo está sempre nublado. Não acontece muita coisa. Digamos assim: poderia ser melhor, poderia ser pior.

O Purgatório é tão excitante como um documentário sobre as novas técnicas de operação de varizes ou sobre as variedades de pinheiros no hemisfério norte. Dá até para ver se não estiver passando mais nada em outro canal. E não está passando mais nada em outro canal.
É, em realidade, um enorme e amplo depósito. Como ninguém mais reza pelas almas do Purgatório, elas aqui vão se acumulando.

Diferentemente do Céu e do Inferno que foram concebido em círculos, o Purgatório está disposto em losangos, trapézios, elipses e eneágonos. É uma geografia peculiar. O caminho até o Paraíso é longo, reto e bem sinalizado. Atravessa todos os níveis do Purgatório até desembocar nos Portal Luminoso. A estrada tranqüila passa por diversos repositórios de almas muito interessantes.

A Cordilheira Nevada dos Budistas. A Garganta dos Luteranos. O Terraço Britânico, onde se hospedam os fãs incondicionais dos autores ingleses do séc. XIX. O Pico dos Violinistas. O famoso Estreito dos Antigos Gregos. A escondida Baía dos Tímidos.

No trecho em que a estrada margeia o litoral cruzei com o Fernando Sabino olhando um mapinha e procurando a Praia dos Cronistas Mineiros e Capixabas. Acenei, mas ele não me reconheceu.

Depois passamos pela Península dos Psdbistas. Estão todos lá. Menos o Sérgio Motta, que hoje dirige uma promissora casa de bingo no Sexto Círculo do Inferno, que é, na verdade, apenas uma fachada para uma rede de fast-food macrobiótica tailandesa.

A Ilha dos Autores de História em Quadrinhos. É um estágio temporário. Depois de cumprir alguma penitência aqui o quadrinista é levado ao Paraíso ou para o Inferno. Winsor McCay, por exemplo, recebeu o cargo de designer do Oitavo Círculo Celeste. Walt Disney está no Sexto Círculo do Inferno, lavando escarradeiras e latrinas no Bairro dos Hunos.

O Penhasco dos Malandrinhos, aqueles que levaram uma vida pecaminosa e só se arrependeram no último instante.

A Selva dos Ecologistas. Aqui eles aprendem o que é viver realmente em harmonia com a natureza. Sem livros e sem fósforos.

A Planície Amarela. Lotada de chineses, alguns bilhões. Dispostos em camadas.

O Vale dos Esquecidos. Aqui são depositados aqueles que morreram fazendo diálise; aqueles que morreram em shoppinng centers durante a semana do Natal; aqueles que morreram de tédio em asilos públicos ou em festas de aniversário de crianças; e aqueles que nasceram, viveram e morreram na Islândia.

Tenho que admitir que o pior momento da travessia do Purgatório foi passar pelas Colinas dos Embriões no Limbo. Era preciso extremo cuidado, eu e meu jegue, ao pisar no chão nessa região para não esmagar a alma dos pequeninos seres humanos de apenas uma, duas semanas de vida que brotavam a todo instante por aqui e acolá.

Eu escutava suspiros doloridos. Era Sócrates, que brigara novamente com a comunidade dos Gregos. Só que dessa vez não teve a opção da cicuta. Já estava ficando viciado naquele troço. Só lhe restou o exílio. Desanimado, sentado no alto da colina, tentava estabelecer algum diálogo com os milhões de fetos e embriões do Purgatório. E suspirava.

Petland Highs, o planalto dos animais de estimação muito queridos mas não batizados. Muitos cachorrinhos lindos e gatinhos fofos. Um ou outro passarinho. Alguns cavalos trotavam ao longe. Talvez tenha avistado um golfinho. Não tenho certeza.

No mais, uma travessia sem incidentes. Fomos seguidos à distância por um chimpanzé de quimono púrpura no final da trilha e uma tribo de pigmeus curiosos, logo no começo, que devem ter sentido o cheiro dos pastéis de camarão. Uma jornada tranquila pelo Purgatório. Aliás, como sempre.

Um clarão branco surgia no horizonte. Segui essa luminosidade intensa e quase cegante.

Por fim, entrei na Luz.