21.10.04

Divina Tragédia (canto V) - A Grande Pirâmide Celeste

Minhas pupilas começaram a se adaptar à luminosidade celeste. É muito claro por aqui. Por isso vários anjos usam óculos escuros. Principalmente os que acordam de ressaca.

A entrada para os Céus é uma enorme pirâmide. Toda dourada, com um olho luminoso no topo, que brilha como um farol. E enxerga tudo. A pirâmide fica no meio de um oásis, que fica no meio de um deserto feito de uma espécie de luz sólida e granulada. É meio esquisito e não adianta explicar essa luz sólida e granulada. Se vocês forem bonzinhos e comerem bastante fibras, um dia vocês saberão como é. Se não, paciência, vão ter que fingir que entendem o que eu estou falando.

Havia uma fileira de pessoas esperando para entrar na Pirâmide. Muito estranha essa fila. Era uma fila de mutilados. Manetas, pernetas, gente sem cabeça. Corpos carbonizados carregavam carrinhos-de-mão repletos de pedaços de gente. Até que chegou um sujeito num tapete voador e pairou sobre a fila. Logo atrás chegou uma grande montanha. Era Maomé. O Profeta, com uma face sem rosto e o corpo involto por labaredas laranjas, vinha pessoalmente cumprimentar e abraçar os muçulmanos mortos nas recentes Jihads. Só então notei que entrara na fila do Paraíso Muçulmano. Fila errada. Não que eu me incomodasse com uma cota de setenta virgens ou com um orgasmo que dure seiscentos anos. Mas não hoje. Primeiro os negócios.

Abandonei a fila islâmica ainda acompanhando as manobras aéreas do tapete voador de Maomé e a bizarra montanha que sempre seguia seus movimentos. A minha entrada correta era pelo lado ocidental da Pirâmide onde havia muito pouca gente. No Céu, poucos são os escolhidos. Aqueles de muito bom gosto. As pessoas boas de coração. Aqueles que tentaram amar seu próximo como a si mesmos. Ou seja, muito pouca gente mesmo. Quase ninguém.

A recepção do Céu é algo entre um gigantesco Hotel de Luxo, um Banco e um Shopping Center em sociedade do Bill Gates, Trump, Onassis e Rockfeller. Um hall central amplo com pé direito estratosférico. No centro há uma árvore frutífera delgada que atravessa todos os andares até a cobertura onde ficam os Escritórios Centrais. Longas colunas de vidro contêm aquários com peixes tropicais, corais multicolores e demais bichos exóticos que nadam para cima e para baixo ou grudam-se no vidro. Um deles tem a Jaqueline Bisset de camiseta e snorkel. Além da transparente cúpula central, a iluminação natural é provida por um sistema de clarabóias basculantes fotosensíveis nas paredes da Pirâmide. O chão é de mármore com filigranas douradas. Enfim, é uma verdadeira obra faraônica.

Na recepção do Céu há vários guichês em diversos idiomas. Filas bem curtas. Preparei meus papéis de entrada. Puxei meu jegue. Por alguma antiga razão os jegues são muito queridos no Paraíso. Dois querubins japoneses se encantaram com ele. E ficaram rodopiando em volta do jegue, dando umas risadinhas de camundongo. É bom ter a presença de anjos e arcanjos por aqui. Eu tinha um diabinho que se instalara na minha nuca há meses e ficava espetando meu nervo. Foi só a aura de um anjo de cabelo rastafari entrar em contato com o diabinho, que ele caiu durinho no chão, estrebuchando. Praguinha.

Na recepção, sentado em um sofá branco, Frank Zappa estava visivelmente desapontado por estar no Paraíso. Sentia-se completamente abandonado. Todos os seus conhecidos estavam no Inferno. E, como em sua ficha não havia nada sério que o desabonasse, estavam tentando realocá-lo no Céu para a ala dos Profetas Modernos. Para sua imensa frustração. Impaciente, levantava-se do sofá e perguntava a uma simpática e ligeiramente estrábica anjinha da recepção, se poderia realocá-lo com alguma companhia interessante:

– Stravinsky? Igor Stravinsky?
– Sinto muito, senhor. – Consultava o terminal – Está em turnê no Terceiro Círculo do Inferno com o Eric Satie.
Zappa voltava ao sofá. Tragava a fumaça de uma cigarrilha. E voltava à bancada da anjinha risonha.
– E o Lennon?
– Sinto muito, senhor. – fofocou sussurrando a vesguinha – Parece que teve uma briga de egos com o filho do Patrão. Uma discussão sobre qual era mais famoso. Ele é um bom moço, mas agora o Filho do Homem deixou ele de castigo uns tempos.
– Mas pelo menos o George Harrison deve estar por aí…
– Lamento, houve um problema com Mr. Harrison. Era para ter reencarnado como um Lama Tibetano e por um erro de digitação voltou à Terra como um Lhama Peruano…
– E nem o Elvis?
– O que consta aqui no terminal é que ele não desencarnou. Continua vivendo tranquilo em sua casa.
– É? Em Graceland?
– Não, em Roswell. Mas temos o Herr Haendel disponível. Ele faz muito sucesso aqui no Céu. E tem uma vaga no quarto dele. Quem sabe o senhor…
Frank Zappa, voltou a deitar no sofá e apertava com os dedos polegar e indicador o espaço entre a sobrancelhas.

Mas atrás do balcão, um alvoroço. Um arcanjo tomava uma grande bronca. Parece que um certo Carol Wojtyla, do Vaticano, já perdera a nona chamada para subir ao Céu. São Pedro estava irritadíssimo e gritava desafinando que o Chefe falou que se ele não vier na próxima chamada não precisa nem vir mais.

Os querubins davam ainda mais risadinhas de camundongo com o xilique de São Pedro. Esses putos.