O portão interno do Quinto Círculo dos Infernos ostentava em bronze os dizeres SIC TRANSIT GLORIA MUNDI.
Um deputado local conseguiu aprovar certa lei e os dizeres foram traduzidos para GLÓRIA, TODO MUNDO PÁRA NO TRÂNSITO.
O jegue foi uma boa escolha. É um dos meios de transporte mais rápidos do Inferno. Os jegues e as bicicletas ergométricas.
O trânsito no Quinto Círculo atingiu praticamente a perfeição da imobilidade. É a configuração automobilística precisa do nó górdio com a banda de Moebius. Não há calçadas nem transporte público. Os carros movem-se alguns centímetros por semana no asfalto mole. Por rodízio. No centro deste magnífico novelo viário foi erigida uma gigantesca estátua de Henry Ford, patrono inconteste do Quinto Círculo, feita de ferragens retorcidas e borracha vulcanizada. Das enormes narinas do colosso metálico sai uma coluna de fumaça preta de motores fundindo, contrastando com o vermelho quente do céu infernal.
Outra grande atração turística do Quinto Círculo é a Roda da Má Fortuna. São caminhões, ônibus, táxis e motoboys que ficam girando eternamente em uma praça rotatória sem saída insultando uns aos outros. No centro desta praça estão presos aqueles motoristas que andam sempre muito devagar, conversam com o passageiro ao lado, não dão pisca mas atravessam o farol assim que ele fica vermelho. Estão todos amarrados dentro de um Ford Ka escutando eternamente uma buzina de FNM de 120 decibéis.
Contrariando muitas expectativas, o Inferno é o verdadeiro paraíso liberal. Enquanto no Céu a maioria dos serviços provêm de um rígido monopólio estatal, aqui grassa o liberalismo econômico radical. A canalização social dos impulsos egoístas de seus cidadãos promoveu ao Inferno enormes progressos. Veja o exemplo das Grelhas de Sete Andares.
Antes havia filas enormes para as Grelhas que tostavam no máximo oito pecadores a cada vez em um processo manual e arcaico. Porém, o desejo dos condenados da fila de ver o camarada da frente queimar mais rápido combinado com o espírito empreendedor dos Demônios Menores e a livre concorrência entre as diversas Grelhas fizeram surgir aparelhos muito mais eficientes. Além das Grelhas de Sete Andares hoje temos também o Giro-Matic 2005, que permite amarrar os eternamente danados em ambos os lados da grelha, duplicando assim a capacidade que já está 148 churrascos de almas por hora/grelha.
No entanto o keynesianismo não chegou ao Céu. John Maynard Keynes muito menos. Mês passado foi promovido a Supervisor-Geral-Sênior do Oitavo Círculo do Inferno. Dizem que a festa de posse foi particularmente tediosa.
Continuei minha lenta escalada até os Portões Negros do Inferno. A privatização das rodovias infernais gerou uma profusão de pedágios. Um a cada 200 metros de rodovia, aproximadamente. Felizmente jegue e militar só pagam meia. Aposentado paga o triplo, pra deixar de ser besta. Fica isento da tarifa se você comprovar estar levando contrabando, que era o meu caso.
Alguns quilômetros antes dos Portais encontrei um narigudo de touca vermelha e vestidão. Dizia estar procurando uma vagabunda, uma tal de Beatriz. Então o rapaz estava no lugar certo. Aqui não falta mulher. As mais bonitas vão para o Céu integrar o mostruário do Criador (com o perdão do meu francês), porém as mais depravadas vêm sempre para cá.
O narigudo começou a explicar que desgarrara-se do seu guia e estava perdido. Pela descrição percebi que ele estava no lugar completamente errado e que o que ele estava procurando mesmo era o Hades e não o Inferno. É muito comum esse tipo de confusão por aqui. O pessoal de fora acha que é tudo a mesma coisa. Não é.
– Ixi! Você pegou o caminho errado, camarada. Você faz assim: volta por essa estrada amarelo-enxofre, passa a Caverna dos Silêncio Eterno dos Astecas e segue em frente toda vida, toda a vida, toda a vida, vai passar o Valhalla também, mas não entra lá não que o pessoal é meio invocado, vai reto e na entrada seguinte você vira à esquerda e desce a ribanceira. Entendeu? Ali é o Hades. Não tem como errar.
O narigudo de touca vermelha agradeceu e eu retribuí. – Vá com os diabos! – acenei amistosamente. O augúrio se cumpriu e rapidamente um grupinho de demônios verdes agarrou-lhe os pés e arrastou o infeliz pela estrada amarelo-enxofre.
Perto dos Portões Negros do Inferno da entrada comecei a escutar muitos e altos palavrões em francês.
Jacques Derrida discutia com um dos Demônios Burocratas e argumentava que tudo era um equívoco. Que o Inferno não existia na realidade, era apenas um constructo lingüístico baseado no arcabouço proto-medieval da mitologia greco-cristã arraigado no imaginário da civilização ocidental. Disse isso em francês, que era mais chic.
O Demônio Burocrata pediu com muita gentileza que o filósofo francês fosse desconstruir o clitóris de sua mãezinha e que se juntasse ao outro grupo recém-chegado de judeus ortodoxos que aparentavam estar muito surpresos. Muito ortodoxamente surpresos.
Na Alfândega, o procedimento de praxe. Entreguei o contrato Golden-Master-Plus-Hot-Hot-Hot com a cláusula de férias, o passaporte, o IPVA do jegue e o exame de urina. O diabinho encarregado conferiu estar tudo nos conformes e pediu a propina. Entreguei-lhe meu relógio dourado. Procedimento de praxe. Já nem me importo.
No inferno os relógios marcam somente uma única hora. E essa hora é "Tarde Demais".
O próximo passo foi passar pela Segurança e o temível cão Cérbero.
Temível, Hediondo, Apavorante são adjetivos muito usados para o cão Cérbero. Talvez sejam descrições um pouco otimistas. A propaganda do Inferno é de alta qualidade, já que pra cá vem o contingente total das agências de propaganda da Terra. Assim, os publicitários podem ter exagerado um pouquinho nas características do Guardião dos Infernos. Cérbero, na realidade, é um cachorrinho pequenino magrinho de três cabeças. Uma de chiuaua, outra de pequinês, outra de poodle-toy.
Pode não ser o cão mais assustador do Mundo. Mas com certeza é o mais mala.
Deixei o pentelho do Cérbero latindo para o Virgílio, que é um guia, velho conhecido nosso da InferTur. Supersticioso, está sempre com o raminho de arruda atrás da orelha. Ao passar pelos Portões Negros entalhados pelo Rodin e Basquiat gritei:
– Virgilioooooo! A Eneida é uma merdaaaaaaaaa!
Virgílio deu um bico no Cérbero e de longe me mostrou o dedo.
– Vai se foder, Nivronsky!!
Adoro deixar o velhinho puto. Grande figura esse Virgílio!
13.10.04
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