12.10.04

Divina Tragédia (canto II) - T de Traficante

Jorginho Guinle trouxe o meu jegue.

– E aí, ó Terror de Roliúde? Conta mais.
– Sei de muito pouco. Só sei que já faz alguns meses que essas mortes vêm ocorrendo no Paraíso e que continuam sem solução. Desta vez não foi a Greta Garbo, eu garanto. Eu estava com ela, ensinando o velho baião-de-dois, durante três dos assassinatos.
– Você jura?

Jorginho segurou o pentagrama dourado que trazia pendurado no pescoço e apontou para baixo.
– Por tudo que é mais sagrado.

La Garbo já havia matado alguns criados com um grande vaso de porcelana durante uma crise histérica. Certa manhã, pareceu-lhe ver no espelho o surgimento de algumas rugas. Foi apenas um alarme falso. Havia um alfinete embaixo de seus sete colchões de pena de ganso-real e seu rosto acordara levemente marcado. A morte dos criados relapsos que esqueceram o alfinete foi considerada uma punição bastante razoável e o caso nunca veio à tona.

– Jorge, tome conta dos negócios enquanto eu não voltar.
Jorginho Guinle não estava mais lá. Já partira para a sua visitinha diária a Mae West.

Meu traficante oficial era Orson Welles. Ele tinha dupla cidadania e trânsito livre entre as esferas do Além. As Forças nunca souberam exatamente o que fazer com ele. Assim, Orson fazia espetáculos de mágica no Paraíso e traficava no Inferno. Ou melhor, traficava do Inferno. Todas essas coisas que estão em falta no Paraíso, mas com muita procura por lá. Caravaggios falsos, DVDs piratas, vibradores coloridos e todos os tipos de drogas. Mescalina, crack, ópio, viagra e pastéis de camarão, principalmente.

No Inferno, Orson passava os dias fumando charutos e bebendo tequila em um boteco inóspito encravado entre a vila dos dos dançarinos de flamenco e o bairro dos malufistas. Instalava-se sempre em uma enorme cadeira de vime branco virada para um poço de lava e enxofre onde se debatiam advogados e produtores de Hollywood, para evidente satisfação do velho Orson. Duas mulatas pubescentes brincavam em seu colo e uma núbia lhe soprava gentilmente o suor da nuca.

Assim que Orson me viu chegar escutei sua voz de vulcão:
– Ora, ora, ora, se não é Michaetch Mahukutaefail Wladisknivronzky. O que o traz aqui, Nivronsky?
– Meu jegue. Escute, Orson, estou pensando em tirar minhas férias acumuladas no Paraíso. O que você sabe dos assassinatos que estão ocorrendo por lá?

Ele ajeitou seu corpo imenso na cadeira de palha. Esse processo demorou pelo menos uns seis minutos. No Inferno, Orson tinha a aparência balofa, imberbe e suarenta de A Marca da Maldade, enquanto no Céu, personificava o jovem galã de Cidadão Kane. Eu preferia a versão Orson de barba comprida e cinzenta. Mas no Inferno barbas longas são evitadas. Perigosamente inflamáveis. Bebeu um gole de tequila. Deu uma mordida no sanduíche de pimenta, picles e carne-de-sol. E eu ali, esperando.

– Por que você quer saber?
– Porque estou comendo o pão que o diabo amassou e no Paraíso eles costumam pagar bem por essas investigações.

É verdade. Aqui só me pedem flagrantes de adultério. Maridos querendo fotos da esposa trepando com outros. Não é à toa que os chifres são comuns por aqui. Quando a investigação aponta que elas não têm amantes, mando o Jorginho fazer o serviço e tiro eu mesmo as fotos. O casal fica sempre muito feliz, mas não paga bem. Só ganho alguns cobres quando publico as fotos nas revistas de maior circulação nos Infernos que são a Private Especial de Carnaval e O Acendedor da Seicho-no-ie Especial de Carnaval. O carnaval aqui, como se sabe, dura o ano inteiro, mas só tem cerveja quente e choca. A música é feita só de refrões de axé music emendados uns nos outros, cantados pelo Carlos Imperial se alternando nos vocais com um demônio assírio com cabeça de cabra e voz gosmentamente bêbada.

Orson fez várias caretas enquanto se ajeitava novamente na cadeira. Parecia uma Moby Dick moribunda tentando sair de uma cesta de vime num mercado na periferia de Bangcoc.

– Pois bem, eu direi o que eu sei. Mas você, Nivronsky, fará um serviço de transporte para mim, ok?
– Sem problemas. Meu jegue será sua mula.

Orson Welles explicou que todos os crimes tinham acontecido na elegante mansão de Lord Buttock. Todos aqueles que investigaram o caso acabaram tendo uma morte misteriosa. O último foi Sir Arthur Conan Doyle. Com medo de encarnarem novamente na Terra, os detetives locais foram todos abandonando o caso e, assim, ele continuava insolúvel. Mas não para uma alma naturalmente investigadora e eternamente danada como a minha, frisou meu amigo Orson.

Guardei dentro do jegue as encomendas que Orson enviava moradores do Paraíso. Felizmente meu jegue era gay e não se incomodou.

– E, Nivronsky… – rosnou Orson com malícia.
– Sim?
– … não vá perder a hora. – Orson me estendeu sacanamente o meu próprio relógio que ele havia empalmado. Ele sabia que seria importante.

Entardecia. Piquei a mula rumo aos Portões Negros do Inferno.