Rogério sussurra – Porra, André, o pastor falou pra gente não vir pra cá, cacete!
– Se quiser ir embora, pode ir. Já que é de grátis, eu vou usar meu vale-consulta.
– A gente só vai atrair coisas ruins. Vamos embora!
– Nada, vai ser divertido, se acalma.
– Shhhiu, a mulher vem vindo.
André e Rogério estão sentados em um canapé verde-musgo aveludado. Muitas velas com cheiros imcompatíveis estão acesas em pontos diversos da casa. A luz bruxuleante revela estantes repletas de quinquilharias esotéricas, cortinas com estampas de frutas coloridas, fotos antigas em molduras ovais, flores de plástico, estátuas de santos e relógios. Uma grande coleção de relógios parados. Rogério repara em um canto - Aquele bicho é de verdade ou está empalhado? - Uma sombra grande começa a invadir a sala mal iluminada.
- Por favor, passem à sala de consultas. – Madame Cassandra, uma senhora grotescamente gorda e maquiada indica uma saleta lateral atrás de uma cortina de miçangas.
A pequena saleta está engolfada pelo incenso que cheira a sabonete de rodoviária do interior. Cartas embralhadas. Corte com a mão esquerda. A primeira carta é o O Eremita. Os rapazes se entreolham. A figura da carta mostra a figura um tanto familiar de um velho barbudo carregando uma lanterna e um cajado.
- Há um estranho perseguindo vocês.
- Olha, é mesmo! - diz André rindo e apontando a carta - É igualzinho àquele mendigo maluco.
- E... a senhora… saberia o que esse homem quer com a gente? - balbucia Rogério.
As mãozinhas gordotas viram uma segunda carta. O Louco.
- Este senhor quer recuperar a sua sanidade, sua lucidez. - responde a cartomante com sua voz adiposa.
Terceira carta. Cavaleiro de Copas.
Madame Cassandra aponta para André o seu indicador de unha roxa e anel de hematita.
- E ele deseja transmitir a loucura dele para você, menino – e só para você.
- Opa, que legal! Eu sou esse cavaleiro aqui com a taça dourada, é?
- Meu, se liga! Eu não posso saber o que ele tem para dizer pro André? E por que só o André?
A cartomante vira a carta O Sol onde aparecem duas crianças.
- Por causa do seu irmão gêmeo, menino.
- O Vicente?
Ela vira mais uma carta. É um Três de Ouros.
- Não, o outro. O terceiro gêmeo.
- Putz! Mas ele morreu quando eu e o Vicente nascemos.
A face molenga da vidente faz um muxoxo como quem diz “Sim, mas o que eu posso fazer?"
- E qual que é a carta do Rogério? Aposto que é o Boiola sem Espadas, haha.
- Cara, eu vou te dar uma muqueta na fuça! Mas, afinal, o que o mendigo está querendo dizer para o André?
Madame Cassandra retira mais uma carta do maço mas não a deposita na toalha vermelha. Seu rosto se contrai. Os olhos reviram. Ela grunhe e cai de cara na mesa. A carta ainda em sua mão, virada para baixo.
- Puxa vida, logo agora que eu ia perguntar quem vai ganhar a Copa da Alemanha!
Rogério dá um cascudo em André.
- Ai, cacete!
- Eu avisei. Você não tá vendo que isso é sério?
- Pombas, Rogério, - André baixa a voz - vai dizer que você está acreditando nesse teatrinho?
Rogério não responde. Ele se concentra na carta sob a mão da vidente. Ele cria coragem e a puxa para si, temendo que a carta traga a figura inequívoca da Morte com seu esqueleto risonho e foice. Mas ao virar a carta ele também empalidece.
A carta está completamente em branco.
7.4.06
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