5.6.06

Desvendando o Código Di Cavalcanti (parte I)

Capítulo 1

O cadáver do Comendador Pascácio, um famoso mecenas paulista, é encontrado enforcado no átrio central da Pinacoteca de São Paulo. Na realidade o corpo já fora achado vários dias antes, porém todos imaginavam que se tratasse de uma instalação. Os funcionários somente começaram a desconfiar devido ao fedor insuportável que emanava da obra, pior até que o auto-retrato com ovos e bacon de Vik Muniz de 1983.

Sua sobrinha, Maria Eliane de Menezes Matarazzo Almeida Prado Alcântara de Bragança e Bourbon, conhecida como "Buluca", dirige-se à Pinacoteca para reconhecer o corpo do tio, carregando consigo o professor Epaminondas Junqueira da cadeira de Semiologia, Artes Cinéticas e Candomblé da PUC-SP. O professor Epaminondas é o orientador de mestrado de Buluca "Kant, Dansi e Sapateye - a epistemologia dos musicais da Broadway".

A perícia detectou que o Comendador Pascácio levara dezoito facadas nas costas e três porretadas na nuca antes do enforcamento. Os técnicos da polícia paulista trabalhavam com a hipótese de suicídio.

Buluca desconfia do sorriso que seu tio trazia no rosto, pois o Comendador era um sujeito bastante austero e sisudo. Aproveita um momento em que a perícia se distraiu vendo quadros de mulher pelada e examina a boca do Comendador. Encontra dentro de suas bochechas um saquinho plástico envolvendo um bilhete. Ao abrir o bilhete Buluca diz "Está muito difícil de ler. A mensagem está escrita de trás para frente e de baixo para cima". Professor Epaminondas, que conhece à fundo as manhas da decifração de códigos e o sudoku, usa a técnica milenar de girar a folha 180 graus até o texto ficar de pé. Eles se surpreendem com o conteúdo do bilhete.


Capítulo 2

Comendador Pascácio, minutos antes de morrer, tivera tempo de programar uma pequena gincana pela Pinacoteca de São Paulo e escondera diversas pistas nos quadros e ovinhos de chocolate para as crianças. O bilhete diz "Olhem atrás do quadro do Di Cavalcanti" e também trazia os números 32 42 52. Professor Epaminondas registra a complexa série em sua mente privilegiada. Buluca insiste para que fossem imediatamente procurar o tal quadro do Di Cavalcanti, mas o professor Epaminondas considera as mulatas de Di Cavalcanti grosseiras, mal pintadas e muito das sem-graça e prefere visitar a sala de Almeida Júnior, "Aprenda, Buluca, isso sim é que é pintor!".

Ao entrar na Sala de Almeida Júnior, o professor Epaminondas começa a discorrer sobre os diversos mistérios que envolvem a vida e a obra do artista. "José Ferraz de Almeida Júnior foi um pintor nascido em Itu, São Paulo. Ele já era bastante apreciado quando em 1876 o Imperador Dom Pedro II o outorgou com uma bolsa para estudar na Europa. Em Paris, Almeida Júnior teria entrado em contato com uma antiga e misteriosa Ordem de origem portuguesa que o iniciaria nos segredos arcanos da "pincelada no vácuo com chute lateral" e na confecção dos verdadeiros pasteizinhos de Santa Calra."

"De volta ao Brasil, continuou sua carreira de fama, glória e sucesso. Foi amante de Maria Laura do Amaral Gurgel, mas certo dia foi apanhado no flagra e morto a punhaladas pelo marido. Pelo menos é o que diz a história. Muitos desconfiam que sua morte tenha sido por outro motivo. As famílias tradicionais e quatrocentonas estariam descontentes pois Almeida Júnior estaria revelando em seus quadros segredos que deveriam ficar para sempre resguardados. Os Segredos de Évora." "Mas que segredo, professor?" "Se eu contasse não seria um segredo, seria?"

"Mas há muitos indícios. Veja esta pintura, por exemplo."

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"O quadro de Nhá Chica pode ser resumido estruturalmente a dois triângulos retângulos, um maior outro menor. Como se sabe desde Pitágoras, a soma dos quadrados dos catetos é igual ao volume do líquido deslocado. Assim, a soma de 3 ao quadrado mais 4 ao quadrado é igual a 5 ao quadrado. Logo, 32 42 52, como no bilhete. Ou, por outro lado, o Comendador Pascácio estivesse somente pensando em jogar no bicho."

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"De qualquer modo, repare que cada um dos triângulos, como o PMDB, aponta para um lado distinto. Nhá Chica está na janela à espera de algo. Mas do quê exatamente? É um mistério que involve os críticos de arte há quatro séculos" "Mas o senhor disse que ele nasceu em 1850 e portanto não…" "Sim, sim, não me interrompa. Nhá Chica olha para a direita, que é o Oriente. Seu cachimbo aponta para o Nascente, direção pela qual os navegantes chegaram ao Brasil. Os dois triângulos lembram também a forma das velas latinas usadas pelas caravelas que por aqui aportaram. Coincidência? O bule, inclusive, é um símbolo clássico de androginia (assim como a própria Nhá Chica, não sei se você reparou) pois ele é ao mesmo tempo um recipiente, um útero, por assim dizer, mas também possui um bico, um falo. É o bule hermafrodita citado nos clássicos, o a Relíquia Masculino-Feminina, está acompanhando?" "Estou, mas o que isto tem a ver com…" "A-HÁ! Siga-me até este outro quadro"

"Pois quem quer que seja que Nhá Chica esperava, neste quadro ele chegou."

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"No entanto ainda é muito cedo. Repare como há uma verdade prestes a ser revelada, mas ainda não é o tempo, ainda não é o momento. Há muitas referências e simbologias nesta tela também. As Listras Horizontais. A Cadeira. O Tapete. A Pena no Cabelo. Porém o mais importante é a pintura no alto, ao lado da cortina, que revela um mar revolto onde uma nau acabou se perdendo em uma tempestade." "Mas, professor, para mim parece um campo com árvores…" "MAS NÃO É! É um mar revolto, estou lhe dizendo."

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"Se você se afastar o suficiente, ficar meio na diagonal, bem na posição apontada pelo quadro de Nhá Chica e semicerrar os olhos até ficar tudo muito embaçado, você verá que a pintura se parece com um mar revolto onde uma nau acabou se perdendo na tempestade, oras!" "Mas se eu fizer isso, professor, eu posso acabar vendo qualquer coisa!" "Exatamente! Noto que você está progredindo rapidamente. Repare nesta outra pintura:"

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"O Violeiro, um dos quadros mais controversos de Almeida Júnior" "Por que controverso, professor?" "Porque Almeida Júnior estava completamente nu quando o pintou. E usava pernas-de-pau e uma máscara africana. E cantava Nessum Dorma em falsete. Mas enfim. Ele retrata um violeiro, um trovador, praticamente um menestrel medieval. A parede de barro, a camisa xadrez, o lenço amarelo seguro com as duas mãos pela Frida Kahlo são simbologias bastante óbvias e certamente não preciso discorrer a respeito."

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"Agora, veja que essa imagem também pode ser decomposta em formas geométricas básicas. Se fizermos o triângulo retângulo vermelho em torno do violeiro, um triângulo isóceles púrpura sobre a Frida Kahlo e um retângulo verde-azulado na moldura da janela, o que teríamos?" "Teríamos arruinado completamente o quadro?" "Exatamente! Passemos a esta outra pintura…"

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"O famoso 'Caipira picando fumo'. O Mono Liso Brasileiro. Seus pés são considerados tão enigmáticos quanto o sorriso de sua antípoda no Louvre. Essa figura piolhenta do Caipira parece serena, pacata e sossegada, não? Incapaz de fazer mal à qualquer pessoa. Pois bem. Se eu pegar esse marcador vermelho-sangue e fizer assim, assim, assim, aaaassssssim e assim, ops, foi demais, assim não, mais tipo assim, isso, não pareceria uma figura demoníaca?"

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"Professor, isso não está ajudando muito, poderíamos voltar à primeira pista, ao quadro de Di Cavalcanti?" O Professor Epaminondas, contrariado, acaba concordando mas gostaria de deixar bastante claro que considera Di Cavalcanti definitivamente "overrated".


Capítulo 3

Atrás do quadro de Di Cavalcanti, que eles deveriam ter olhado logo de cara, está uma pequena caixinha de bom parecer. A tampa da caixinha traz o desenho de uma nau portuguesa e o símbolo da Cruz de Malta. "Ele era vascaíno" explica sua sobrinha. Dentro encontram uma chave estranha com o seguinte bilhete em forma de charada escrito a lápis:

1 - Importante líder zapatista, usa touca e fuma cachimbo.
2 - Nota da administração Kassab.
3 - Ligar para dona Margarida e renovar o seguro de vida, que vai vencer logo. Comprar leite, café solúvel e pomada para hemorróidas.

Neste momento um árabe grita "Jihad! Morte aos infiéis!" com uma faca Guinzo nas mãos e começa a os perseguir pelos saguões da Pinacoteca.