5.11.04

A Divina Tragédia (canto VIII) – A Mansão de Lord Buttocks

Lord Buttocks era também conhecido como O Autor. Era um escritor tão bom, seu conhecimento da alma humana tão profundo e suas descrições tão vívidas, que os seus personagens realmente criavam vida e saíam por aí. Eles passeavam pela propriedade de Lord Buttocks e jogavam croquet. Alguns até chegavam a se assanhar com a criadagem, mas logo Lord Buttocks, O Autor, ameaçava alterar alguma característica física deles em uma nova edição de seus livros e eles retornavam obedientes ao chá e torradas com geléia de damasco.

Porém, agora, os seus personagens estavam morrendo. Um a um. E também seus investigadores. Ninguém descobrira a razão.

Na entrada da propriedade de Lord Buttocks não havia portões. O caminho até a Mansão era protegido por um asseado jardim em forma de labirinto. Como o de Versailles. Apenas um pouco maior e com plantas carnívoras. Não muitas. O suficiente para desencorajar seus diversos fãs e tias-avós em visitas-surpresa.

Resolvi alugar um taxi-aéreo para passar por cima do labirinto. Taxi-aéreo no Céu são uns anjões com umas fitas de seda resistentes e coloridas que formam uma balança aonde senta o passageiro. Ele me deixaria diretamente no hall de entrada da mansão. O anjo que eu peguei era careca e falava fluentemente o paquistanês e o aramaico. Pena que eu não. Consegui me fazer entender por gestos. É preciso ter muito cuidado. Nosso tradicional gesto de positivo é entendido aqui no Céu como "tem penas de urubu saindo das nádegas peludas da sua irmã caçula". Uma ofensa grave.

Como eu imaginava, a vista aérea revelou que o labirinto não tinha saídas para a parte interna da propriedade. Imagino que aquela velha e pequenina senhora de chapéu florido carregando uma travessa com docinhos ainda perambularia muito tempo por ali. Do alto a propriedade se mostrava ensolarada e magnífica. Daria para assentar por ali umas cinqüenta famílias de sem-terra. No mínimo. O taxi aéreo me deixou ao lado da réplica da Fontana di Trevi, onde se banhava uma réplica da Anita Ekberg, diante da entrada da mansão.

Paguei a curta viagem com sete balas juquinha de morango, uma iguaria que acredito ser muito apreciada por aqui. O anjão careca fez um sinal de positivo para mim e, resmungando, levantou vôo.

– Fola! Não pode entlá!

Fui recebido inamistoamente por Nun Li, mordomo de Lord Buttocks, um mau-humorado chinezinho de 60 centímetros de altura. Não era um chinês baixinho, atarracado, mas uma miniatura perfeitamente proporcional de um chinês típico. A cabeça parecendo um ovinho invertido, chapeuzinho preto, bigodinhos finos, vestes de seda vermelha e andar de gato de porcelana. Tudo em miniatura.

Nun Li e Nun Goj-Tei eram irmãos gêmeos. Ambos nasceram, coincidentemente, na mesma casa, no mesmo dia, na mesma hora, embora de mães diferentes. Nun Li era o mordomo de Lord Buttocks e Nun Goj-Tei o motorista do riquixá de Christie, a gata de estimação de Lord Buttocks.

– Não pode entlá!

O mordomozinho chinês, muito sofisticado, sabia 37 idiomas e dialetos, oito línguas mortas e três agonizantes. E odiava falar português. "Lingua hololosa. Palece um lusso embliagado falado ao contlálio." Assim, fazia questão de trocar sempre que possível o R pelo L. Para ridicularizar o ouvinte. É a tal da sabedoria chinesa, acho.

– Senhor Nun Li, eu venho, com uma puta humildade, oferecer os meus especializados serviços ao seu patrão.

Dei meu cartão ao chinezinho que o olhou como se eu tivesse assoado o nariz nele. No cartão ou no chinês. Tanto faz.

– Michaetch M. Wladisknivlonzky, pediculo?
– Não, não sou pedicuro, sou Nivronsky, detetive particular. Foi um erro de impressão. É difícil achar boas gráficas no Inferno. E quando se encontra, estão sempre sacaneando.
– Infelno, é? Então, seu Nivlonsky, é uma alma etelnamente danada?
– Exatamente. E vim resolver esse pequeno incoveniente dos assassinatos em série.
– Hmmmm…

O pequenino chinezinho levantou uma sobrancelha. Levantou também a extremidade de seu bigode e o dedo mínimo do pé direito. Algumas engrenagens metafóricas mexiam na sua cabecinha de bibelô. Ele sabia que as almas eternamente danadas não correm o risco de renascer. Assim eu não correria o risco de terminar como os outros investigadores desse caso misterioso, reencarnando abruptamente na Terra.

– Pol favol, agualde na ante-sala.

Segui o minúsculo mordomo. A ampla sala era uma réplica do interior do Palácio Ducal de Veneza. Só que feita com bom gosto. Ou seja, completamente diferente.

As paredes e o teto eram totalmente recobertos por pinturas e afrescos que estavam sendo repintados por Frederick Lord Leighton. Nessa versão de outono o pintor estava representando as diversas musas. Do teatro, da música, da pornochanchada, do badmington. A musa Yabusa (a musa dos trocadilhos) cansada de posar como modelo, ressonava sobre um divã turquesa. O Próprio Lord Leighton, aliás, dormia pendurado em um cabide num dos cantos do salão com a palheta ainda pendurada nas mãos.

Acontecia que, curiosamente, todas as musas e todas as mulheres pintadas em qualquer cômodo da casa acabavam sempre se parecendo com a Shirley Maclaine novinha. Uma verdadeira obsessão de Lord Buttocks. Uma paixão que jamais seria correspondida, pois a Shirley Maclaine há muito tempo reencarna sucessivamente no mesmo corpo. Sabe-se, porém, que quando terminar a última reencarnação ela será levada por um disco voador para uma outra galáxia em outra dimensão. É essa dor do amor impossível que faz Lord buttocks escrever. A dor e as ameaças do editor.

Porém eu sentia que devido à série de assassinatos ocorrida naquela casa o ambiente estava pesado. Parece que havia uma tensão no ar. Era possível reparar essa tensão no mármore do chão e também nos móveis de marchetaria tcheca. Os candelabros estavam tensos. A casa estava visivelmente toda tensa. Um cálice de champanhe estalou na cristaleira. Lord Leighton acordou, resmungou algo sobre a escassez do verde cádmio e dormiu novamente. Nun Li retornou ao aposento:

– Lord Buttocks o espela no outlo lecinto.