31.5.03

A Ilha de Boring

William Boring foi um Marinheiro Inglês que se perdeu durante uma calmaria no Pacífico. Acabou encontrando uma ilha com topografia chata, onde fundou a cidade de Dullsville. Como esta ilha se localizava na latitude do equador não havia diferença nas estações. O ano todo era insuportavelmente quente na ilha de Boring. Quase nunca ventava e os coqueiros cresciam eretos, todos iguais. E só haviam cocos.

Completamente isolado, William Boring viveu 78 anos nesta ilha deserta. Durante este tempo teve uma produção profícua que incluiu a invenção de vários jogos de paciência, roteiros completos de novelas das 8, vários sketches do Jô Soares, discursos do FHC, todas as músicas do Oasis e a concepção de um certo blog que costuma copiar as coisas dos outros.

William Boring morreu de tédio absoluto, foi canonizado e hoje é o padroeiro da TV Aberta.

...

Entre outras aptidões, William Boring também desenvolveu na Ilha de Boring seu talento como observador de aves. Assim escreveu em seu diário:

“O dia amanheceu quente. Aliás, como sempre. Nem uma nuvem no céu. Como sempre. Hoje, enquanto apagava e refazia as palavras cruzadas da única edição do Diário Oficial que trouxe para a ilha, avistei uma ave cinza e pernalta na lagoa de Boring. Eu a chamei de Ave-Cinza-e-Pernalta-da-Lagoa-de-Boring. O seu gorjeio é longo, estridente e bastante singular.

Ela costuma encolher uma perna e então faz: “Piu-piu-piu-uhuhu, piu-piu-piu-uhuhu, piu-piu-piu-piu-piu-uhuhu, piu-piu-piu-uhuhu, piu-piu-piu-piu-piu-uhuhu, huhu-huhu, piu-piu-piu-uhuhu, piu-piu-piu-piu-piu-uhuhu, piu-piu-piu-uhuhu, piu-piu-piu-piu-piu-uhuhu, huhu-huhu.

Ela, então, se apóia na outra perna e retoma o gorjeio com pequenas variações: “Piu-piu-piu-uhuhu, piu-piu-piu-uhuhu, piu-piu-piu-piu-piu-uhuhu, piu-piu-piu-uhuhu, piu-piu-piu-piu-piu-uhuhu, huhu-huhu, piu-piu-piu-uhuhu, piu-piu-piu-piu-piu-uhuhu, piu-piu-piu-uhuhu, piu-piu-piu-piu-piu-uhuhu, huhu-huhu.

Assim ela passa o dia inteiro. Excetuando o momento depois de se alimentar de besouros verdes, quando ela começa a piar: Huhu-huhu-huhu, piu-piu-piu-uhuhu, piu-piu-piu-uhuhu, piu-piu-piu-piu-piu-uhuhu, piu-piu-piu-uhuhu-uhuhu, piu-piu-piu-piu-piu-uhuhu, huhu-huhu, piu-piu-piu-uhuhu, piu-piu-piu-piu-piu-uhuhu, piu-piu-piu-uhuhu, piu-piu-uhuhu-piu-piu-piu-uhuhu, huhu-huhu.“

Amanhã planejo estudar como seria a variação do seu gorjeio quando alimentada por besouros marrons.

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Tivemos acesso a outras páginas do Diário do náufrago William Boring, que contém 49 volumes, alguns deles dedicados apenas a descrição pormenorizada de suas técnicas de cortar as unhas.

“Hoje, dia 4673 na ilha. Muito calor. Aliás, como sempre. No horizonte observei que não havia nenhuma nuvem. O que também é bastante comum. Porém, mais tarde uma coisa incrivelmente inusual aconteceu. Uma pequena jangada trouxe outro náufrago para a ilha. Como não sei em que dia da semana estamos, chamei-o de 4673. Ele é baixinho, peludo e careca. Descobri que é corretor de seguros e também vendedor de enciclopédias.

Ele insistentemente tentou me convencer a comprar algum tipo de seguro, mas eu decidi que deveria primeiro explicar a ele como funciona o sistema previdenciário que elaborei para a Ilha de Boring. Aproveitei o ensejo e também lhe expliquei o melhor procedimento de coleta e empilhamento dos cocos baseado em seu diâmetro médio e coloração da casca. Acho que foi neste momento que 4673 disse que estava atrasado para um compromisso, retornou para sua jangada e começou a remar rapidamente de volta ao horizonte.

Sentirei saudades do bom e velho 4673.

Felizmente 4673 deixou na Ilha as enciclopédias. Ainda bem, pois já reli 7 vezes o catálogo telefônico de Londres, o único livro que temos na Biblioteca de Dullsvile. É uma leitura interessante, mas tem muitos personagens e pouco enredo. Essa enciclopédia está em Esperanto. Uma ótima oportunidade para aprender a língua. Deixe-me ver... Página 1, Aadvark...”

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"Influenciado por certos caramujos que andei observando, pretendo inventar um estimulante jogo que chamarei de Baseball...”

30.5.03

Pra não dizer que não falei de Amor

O Amor não é um filme do Hugh Grant.
O Amor é o temporal que desaba sobre você na saída do cinema.

O Amor não é o sexo bucólico na praia deserta.
O Amor é ser arrastado pela correnteza até onde jantam os tubarões.

O Amor é um acidente de motocicleta com a barraquinha de cachorro-quente.
Com baço perfurado, traumatismo craniano e que ninguém acaba sobrevivendo.

29.5.03

Da Teoria da Inacessibilidade

Quando eu tinha 7 anos tudo o que eu queria era ser grande para poder comer quantos sonhos-de-valsa eu quisesse.

Hoje tenho um baleiro cheio de sonhos-de-valsa e tudo o que eu queria era ter 7 anos novamente.

28.5.03

Número Dois

Na bandeja do McDonalds dezenas de criancinhas sorridentes. O texto covida a encontrar as duas que são iguais. Mas o que realmente acompanha o quarterão com queijo é uma antiga revista relatando o campeonato brasileiro de Air Guitar. Ao final vão para o lixo as pequenas crianças que jamais se encontrarão.

26.5.03

Aquele que é Tudo de Bom

No Céu,
Finalmente me encontro com Aquele que é Tudo de Bom.

Cheguei aqui procurando o que era Bom e evitando o que era Mau. Primeiro com a razão. Quando esta não bastou, usei a intuição, e por fim segui apenas o coração. E agora aqui estou, recompensado. Ele oferece-me um lugar para sentar ao Seu lado. Ele acomoda-Se lentamente em uma poltrona branca, eu em uma confortável cadeira acolchoada.

Sua barba é branca e quase luminosa. Seu manto é alvo com intrincados bordados em prata. Seu silêncio irradia calor e bondade. Seu sorriso é paz e tranqüilidade. Sinto vontade de deitar em Seu colo para adormecer e curar todas minhas mágoas da vida terrena. Mas não tenho nem sinto mais sono ou dores. E estaria possivelmente rompendo inúmeros protocolos celestiais se deitasse em Seu colo. Decido, pois, permanecer sentado.

– Oh Altíssimo e Glorios... – tento dizer, mas sou interrompido.

Ele estende a mão espalmada e puxa de um alforje de camurça uma série de grossas fichas retangulares. Passeia com os dedos sobre suas bordas e me entrega uma com o número 1 estampado. "Não é mais necessário puxar o saco" está escrito em baixo-relevo com caracteres floreados. Ele me dá uma sutil piscadinha enquanto devolvo a ficha.

– Ah, compreendo, Senhor! Mas sempre tive cá uma dúvida: Foi o Senhor mesmo que determinou o que é Bom e o que é Mau no mundo?

Ele sorri e me estende mais uma ficha. A número 17. "A Filosofia não se faz mais necessária." Perguntas como essas devem ser bastante freqüentes, imagino. Ele não aparenta estar enfastiado e sorri gentilmente quando Lhe retorno a ficha.

Faz sentido, penso eu. Ele é a última resposta. Ele é a Origem, a Ordem, o Princípio e o Fim. Todas as perguntas a esse respeito podem ser agora definitivamente revogadas. Assim, observando o grosso volume de fichas numeradas em Sua mão, tento afastar da mente essa categoria de questões. E como não quero passar por estúpido, acabo me calando.

Não sei por quanto tempo permanecemos mudos. O recinto está praticamente vazio. Não há livros, revistas, TV, baralho, charutos ou brandy. Meu plano de passar a Eternidade relendo Proust, Tolstoy, Keats, bebendo xerez e fumando cigarrilhas estava se esvaindo.

– Senhor, e a música? Imaginei que aqui ouviria muitos dos Grandes Compositores.

Ele folheia absortamente as fichas. Depois coloca-as de volta ao alforje de camurça e desta vez responde com Sua própria voz solene e tranqüila.

– Bach, apenas. – levanta gravemente o indicador – mas nada de cravo! E só no Natal.
– E Beethoven? – pergunto ainda tímido. Ele franze a testa por um breve instante.
– Lud? Nós não estamos nos falando, no momento.
– Brahms?
– Brahms não conseguiu chegar. Sinto muito. Wagner também não.
– Wagner também não?
– Meu caro, não se preocupe. Não há mais a necessidade de Grandes Compositores aqui no Céu. Aquilo que todos procuravam através da música já encontraram. Em vez de passeios errantes e inúteis pela escala cromática agora temos uma única nota somente. Esta foi mais uma busca que se encerrou.

Apuro os ouvidos. Desde que cheguei ao Céu senti essa vibração. Um som grave como de uma nota longa produzida por muitos instrumentos em uníssono. Si bemol, se não me engano. Ele Se reclina na poltrona enquanto rege com uma batuta imaginária o si bemol e sorri novamente. Suas bochechas rosadas brotam brilhantes para fora da barba. Ele começa a examinar Suas cutículas com ar compenetrado.

Penso. Há outros mais santos e mártires do que eu. Onde estarão? Por que estamos apenas nós sozinhos nesse recinto? É a Onipresença. Claro, claro. Ele está agora em outros recintos com outros merecedores, é certo.

Reparo em Suas bochechas rosadas. Curioso. Ele tem exatamente a mesma aparência que sempre imaginei. Será que Ele é sempre o mesmo ou é diferente para cada um dos que O alcançam? Será que um negro O vê como um velho negro? Alguns poderiam vê-Lo como uma mulher? Uma velha? Uma velha negra? E se ele não fosse Ele? Poderia ele ser o Outro? No momento que penso nisso o velho pára de cortar as cutículas com o alicatezinho dourado. Ele olha fixamente para mim e arreganha mais um sorriso – me congelando a espinha – que vai se transformando numa enorme, longa e rouca gargalhada. Em si bemol.

22.5.03

Chega um momento em que há muitas últimas coca-colas geladas do deserto.
Na realidade, você olha e só vê coca-colas geladas por todos os lados.
É um autêntico mar de últimas coca-colas geladas em que você quase se afoga.

E tudo o que você deseja é um pedacinho de terra seca para por os pés.

19.5.03

Sou um pastor de fuscas. Todas as manhãs, com o dia ainda clareando, abro a porteira e os encontro com os parabrisas ainda úmidos de orvalho. Acaricio as suas arredondadas latarias, verifico a pressão de seus pneus, ponho 5 litros de gasolina no tanque de cada um e levo os meus fuscas para a colina.

Sou um pastor de fuscas. Sento com meu cajado no alto de uma pedra branca e os observo. Alegra-me vê-los com suas carrocerias luzidias, brilhando ao sol, capotando alegremente na relva. Gosto de vê-los dando cavalos-de-pau apenas para se exibirem. Os fuscas têm uma especial predileção por girar em torno da carcaça enferrujada de um velho Dodge Dart, buzinando inocentes.

Sou um pastor de fuscas. Ao final da tarde os arrebanho, cansados e elameados, para um banho de esguicho ao pé da colina, próximo a regato. Nos retrovisores o sol vermelho se espreguiça e vai se recostando no horizonte enquanto os fuscas aguardam as primeiras estrelas ronronando seus motores em marcha lenta.