Aquele que é Tudo de Bom
No Céu,
Finalmente me encontro com Aquele que é Tudo de Bom.
Cheguei aqui procurando o que era Bom e evitando o que era Mau. Primeiro com a razão. Quando esta não bastou, usei a intuição, e por fim segui apenas o coração. E agora aqui estou, recompensado. Ele oferece-me um lugar para sentar ao Seu lado. Ele acomoda-Se lentamente em uma poltrona branca, eu em uma confortável cadeira acolchoada.
Sua barba é branca e quase luminosa. Seu manto é alvo com intrincados bordados em prata. Seu silêncio irradia calor e bondade. Seu sorriso é paz e tranqüilidade. Sinto vontade de deitar em Seu colo para adormecer e curar todas minhas mágoas da vida terrena. Mas não tenho nem sinto mais sono ou dores. E estaria possivelmente rompendo inúmeros protocolos celestiais se deitasse em Seu colo. Decido, pois, permanecer sentado.
– Oh Altíssimo e Glorios... – tento dizer, mas sou interrompido.
Ele estende a mão espalmada e puxa de um alforje de camurça uma série de grossas fichas retangulares. Passeia com os dedos sobre suas bordas e me entrega uma com o número 1 estampado. "Não é mais necessário puxar o saco" está escrito em baixo-relevo com caracteres floreados. Ele me dá uma sutil piscadinha enquanto devolvo a ficha.
– Ah, compreendo, Senhor! Mas sempre tive cá uma dúvida: Foi o Senhor mesmo que determinou o que é Bom e o que é Mau no mundo?
Ele sorri e me estende mais uma ficha. A número 17. "A Filosofia não se faz mais necessária." Perguntas como essas devem ser bastante freqüentes, imagino. Ele não aparenta estar enfastiado e sorri gentilmente quando Lhe retorno a ficha.
Faz sentido, penso eu. Ele é a última resposta. Ele é a Origem, a Ordem, o Princípio e o Fim. Todas as perguntas a esse respeito podem ser agora definitivamente revogadas. Assim, observando o grosso volume de fichas numeradas em Sua mão, tento afastar da mente essa categoria de questões. E como não quero passar por estúpido, acabo me calando.
Não sei por quanto tempo permanecemos mudos. O recinto está praticamente vazio. Não há livros, revistas, TV, baralho, charutos ou brandy. Meu plano de passar a Eternidade relendo Proust, Tolstoy, Keats, bebendo xerez e fumando cigarrilhas estava se esvaindo.
– Senhor, e a música? Imaginei que aqui ouviria muitos dos Grandes Compositores.
Ele folheia absortamente as fichas. Depois coloca-as de volta ao alforje de camurça e desta vez responde com Sua própria voz solene e tranqüila.
– Bach, apenas. – levanta gravemente o indicador – mas nada de cravo! E só no Natal.
– E Beethoven? – pergunto ainda tímido. Ele franze a testa por um breve instante.
– Lud? Nós não estamos nos falando, no momento.
– Brahms?
– Brahms não conseguiu chegar. Sinto muito. Wagner também não.
– Wagner também não?
– Meu caro, não se preocupe. Não há mais a necessidade de Grandes Compositores aqui no Céu. Aquilo que todos procuravam através da música já encontraram. Em vez de passeios errantes e inúteis pela escala cromática agora temos uma única nota somente. Esta foi mais uma busca que se encerrou.
Apuro os ouvidos. Desde que cheguei ao Céu senti essa vibração. Um som grave como de uma nota longa produzida por muitos instrumentos em uníssono. Si bemol, se não me engano. Ele Se reclina na poltrona enquanto rege com uma batuta imaginária o si bemol e sorri novamente. Suas bochechas rosadas brotam brilhantes para fora da barba. Ele começa a examinar Suas cutículas com ar compenetrado.
Penso. Há outros mais santos e mártires do que eu. Onde estarão? Por que estamos apenas nós sozinhos nesse recinto? É a Onipresença. Claro, claro. Ele está agora em outros recintos com outros merecedores, é certo.
Reparo em Suas bochechas rosadas. Curioso. Ele tem exatamente a mesma aparência que sempre imaginei. Será que Ele é sempre o mesmo ou é diferente para cada um dos que O alcançam? Será que um negro O vê como um velho negro? Alguns poderiam vê-Lo como uma mulher? Uma velha? Uma velha negra? E se ele não fosse Ele? Poderia ele ser o Outro? No momento que penso nisso o velho pára de cortar as cutículas com o alicatezinho dourado. Ele olha fixamente para mim e arreganha mais um sorriso – me congelando a espinha – que vai se transformando numa enorme, longa e rouca gargalhada. Em si bemol.
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