27.10.09

Um caso documentado de possessão eletrodemoníaca


Chegamos ao final da primeira década do século XXI acostumados com os mais diversos problemas técnicos nos eletrodomésticos e produtos eletroeletrônicos. Estamos cercados de produtos xing-ling vagabundos, que compramos baratinho e que estragam 5 minutos depois de retirados da embalagem. Convivemos pacificamente com a obsolecência planejada que faz com que qualquer equipamento dure atualmente muito menos do que durava seu equivalente décadas atrás. Costumamos nos resignar diante de aparelhos que quebram ou deixam de funcionar seguindo o princípio mais básico e universal da Entropia que rege o Cosmos, pois qualquer geringonça eletrônica é como uma lâmpada: de tanto ligar e desligar um dia alguma parte do circuito gasta, queima. Isso é normal, previsível, esperado. Pois bem, não é de nada disso que falarei agora.

Meu problema é de outra esfera: eu sou proprietário de eletroeletrônicos possuídos pelo diabo. Talvez não pelo capeta himself, mas possivelmente por entidades subalternas, traiçoeiras e malignas. Meu aparelho de DVD, por exemplo, está possuído. Não há dúvidas. Você, no entanto, pessoa racional, de pouca fé, há de perguntar: como sei que o tocador de DVD está realmente possesso e não é apenas o tal já comentado mal funcionamento dos aparelhos eletrônicos? Simples, caro leitor, querida leitora. Problemas eletrônicos tendem a ser reprodutíveis, apresentam padrões. Meu aparelho de DVD, não. Os problemas são aparentemente aleatórios. Mais que aleatórios, são propositalmente perversos. Ele recusa-se a passar justamente as cenas mais fundamentais dos filmes, mesmo em DVDs novíssimos, recém-desembalados da caixa. Filme ruim, toca direitinho. Filme bom, não há maneira. E não é só. Abre e fecha a gaveta sem ninguém comandar, dá eletrochoques ao apertarmos o botão de eject, desliga e liga por conta própria em horários completamente despropositados.

Claro que levamos o aparelho à assistência técnica, que não constatou nada de anormal, funcionamento perfeito, tudo em ordem: 230 reais. Ao chegar em casa, revoltado talvez com a nossa impertinência, o aparelho de DVD encapetou-se de vez. Agora só abre a gaveta 5 minutos depois de desistirmos de apertar todos os botões. Até chegou a cuspir um DVD do Buñuel, arremessando-o na parede oposta, derrubando porta-retratos de mamãe. Mais recentemente deu para fazer um barulho tipo rrrrrrrrkkkkkkkk ao abrir a gaveta. Mas não um rrrrrrkkkkkk qualquer. Um rrrrrkkkkk meio tétrico, que parece vindo de longínquas dimensões lovecraftianas.

Mas tudo isso, apesar de absurdamente estranho, não vinha nos incomodando tanto, a princípio, ficando, assim, no campo do folclórico: "Olha só, hahaha, temos um DVD player encapetado! eheheh". Passamos a assistir a quase todos os filmes diretamente no computador, a despeito dos grunhidos ameaçadores e resmungos abafados vindo do canto da sala onde os leds vermelhos do DVD player brilham como dois olhos demoníacos na escuridão.



Nosso problema com o além realmente começou quando a tal possessão demoníaca contaminou os demais eletroeletrônicos da casa. O forno de micro-ondas funciona quando quer, na temperatura que quer. Demora mais de duas horas para descongelar um peixe que estaria na temperatura ambiente mais rápido se estivesse em cima da pia. Temos também telefones sem fio, que sistematicamente se recusam a falar e/ou ouvir. Ou tocam, tocam e ao atender, apenas escutamos murmúrios distantes.

Mas como temos certeza de que se trata de possessão demoníaca? – retorna você, com o inapropriado racionalismo. Porque – nós responderíamos com nossa peculiar paciência – sempre que vem um técnico ou são levados para a autorizada, os aparelhos funcionam perfeitamente, como se tivessem acabado de sair da fábrica.

Decidmos conclamar a tia da vizinha do 308, que é benzedeira. Ela espalhou ervas, incensos e feng shuis em pontos estratégicos do apartamento — 299 reais mais a condução — e, efetivamente, depois de toda defumação, os eletrodomésticos começaram a se comportar bem melhor. Ou, pelo menos, assim nos parecera.

Semana retrasada começou a baixar uma entidade na máquina de lavar. Uma pomba-gira, presumimos. Ela grita, se sacode inteira, treme toda a lavanderia, chacoalha os vidros, apavora os gatos, fazendo um barulhão dos infernos, possuída simultaneamente por três pombas giras de ciclo longo. Ante esse ser metálico de proporções semi-humanas finalmente nosso pavor atingiu o limite. Certo dia acordamos e ela estava lá, parada, silenciosa bloqueando a porta do quarto. Talvez estivesse nos observando dormindo? Seria somente uma ameaça? Não sabemos. Terror. Pois vejam que, até então, nossos eletrodomésticos agiam por conta própria, mas ficavam quietos em seus cantos. A máquina de lavar foi a primeira a perambular sozinha pelo apartamento, em seu passo trepidante de frankenstein, abrindo e fechando a tampa, como uma bocarra faminta revelando um estômago vertiginoso batucando como 350 tambores de vudu em uma turbina de boeing.

Assim, com medo de ser deglutidos em vida por uma lavadora ávida de roupas sujas, estivessem elas vestidas ou não, não restou outra opção senão chamarmos um exorcista de verdade.

No momento em que o exorcista da Brastemp chegou com a chave em cruz e o amaciante-bento, a máquina de lavar deu um ronco monstruoso e saiu voando, estilhaçando a janela da cozinha, como que catapultada, e foi chocar-se no prédio do outro lado da rua, criando um rombo na parede do apartamento em frente e matando o poodle do vizinho. O seguro não cobre lavadoras endemoniadas. Vamos ter que pagar pedreiros, vidraceiros, enterro do poodle e mais as horas extras do exorcista da Brastemp, pois a máquina de lavar l evantou-se e continuou seu périplo chacoalhante pelo apartamento em frente, endemoniando os eletrodomésticos do prédio vizinho.

Porém o mais assustador, chocante, apavorante, aterrorizante aconteceu hoje cedo. De manhãzinha escutei o tic tic tic do teclado e vim ao escritório. Tudo quieto. Não havia ninguém diante do computador ligado. Olhei para o monitor e o texto acima já estava inteiramente escrito.

E horror dos horrores: havia se postado sozinho.